domingo, 4 de março de 2012

scorpions - eye ii eye (1999)

Se há alguma semelhança entre todos os fãs, de todos os artistas musicais, de todos os gêneros possíveis e imagináveis, é esta: sempre vai ter alguém que vai chiar quando o artista/a banda em questão lançar um disco que foge do escopo que linearizou em seus álbuns anteriores. Não é algo absurdo, diga-se de passagem; fã que é fã defende com unhas e dentes o som característico de seus artistas favoritos. Há discos que fogem da proposta da banda e que se tornam verdadeiros fracassos - o caso mais recente é o Metallica e seu lançamento, em parceria com Lou Reed, do Lulu, eleito o pior lançamento do ano passado. Mas em outros casos, como o Iron Maiden em seu clássico Somewhere in Time (1986), a recepção, a princípio, é enfaticamente negativa e, com o passar do tempo, o panorama muda radicalmente - o SiT hoje é um dos maiores clássicos da Donzela. Na verdade, o que caracteriza a aceitação de um disco desse tipo por parte dos fãs vai muito mais do bom senso musical deles - e, obviamente, da banda.

Eye II Eye é, de longe, o disco que é mais "oito ou oitenta" dentre todos os 18 discos da discografia de estúdio dos Scorpions; há quem ame, e há quem deteste. Com a entrada do californiano James Kottak na banda, a banda decidiu abrir mão do hard rock clássico (por vezes flertando com o glam metal) que acompanhava a banda desde o lançamento de seu conceituado disco Blackout (1982) para fazer uso de novas sonoridades. Posteriormente, a banda lançaria um disco orquestrado com a Orquestra Filarmônica de Berlim, o Moment of Glory (2000); em 2001, a banda foi até o Convento do Beato, em Lisboa, gravar o disco que se tornaria o Acoustica, em formato acústico. Mas o primeiro disco a integrar essa nova era nos Scorpions fazia uso de batidas eletrônicas, mesclando o pop dos anos 1990 com o tradicional hard rock da banda.

Aliás, é bom ressaltar uma coisa: Eye II Eye está bem longe de ser um disco para se conhecer os Scorpions. Na verdade, os alemães são uma das bandas mais versáteis em termos de estilo que eu já tenha ouvido, com músicas que foram desde um heavy metal extremamente sujo, beirando o thrash, até composições que tragam o espírito progressivo-psicodélico, característico da década de 1970, passando por estilos como o flamenco, o frevo, o blues, o speed metal e, claro, muito hard rock. Mas Eye II Eye é talvez o único álbum de toda a discografia da banda que foi totalmente rejeitado pelos seus fãs logo de cara - seu antecessor imediato, Pure Instinct (1996), trazia uma série de baladas românticas, que consagraram a banda e, de certa forma, se tornaram a identidade dos alemães de Hannover perante o grande público, gerando até um certo preconceito de algumas pessoas, e talvez esse seja um dos motivos de tamanha rejeição.

Individualmente, há muito pouco o que se falar da banda, justamente pela característica de ser um disco moldado sob o estilo pop. Pode-se atentar ao baixo sempre muito presente de Ralph Rieckermann - para os que reclamam de que o baixo é um instrumento muito ausente, em termos auditivos (o que eu discordo veementemente), Eye II Eye é um disco interessante pra se mudar essa postura. Talvez isso se deva ao fato de que as guitarras são bem menos presentes do que haveria de se esperar de um disco de hard rock; na mixagem, ouve-se quase nada de Rudolf Schenker e Matthias Jabs na maioria das músicas, com exceção (óbvio) dos solos. A bateria do estreante Kottak, nota-se claramente (em particular ao ouvir lançamentos posteriores, como o Unbreakable (2004)), foi moldada para os padrões do disco, o que limitou bastante seu trabalho. Com relação a Klaus Meine, não há absolutamente nada a se dizer: o alemão prova, pela enésima vez, o poder de suas cordas vocais e o porquê de frequentemente estar listado entre os grandes vocais de todos os tempos.

Como um disco, Eye II Eye prova-se um tanto inconsistente. O disco é cheio de altos e baixos em sua extensão, com músicas que boa parte adora, mesclada com faixas que são até um pouco non-sense e seguidas por faixas que a maioria detesta. Falando por mim mesmo, as três primeiras faixas refletem exatamente isso - respectivamente Mysterious, To Be n° 1 e Obsession. Talvez por ser tão dual, não há como se citar faixas específicas que podem ser taxadas de boas ou ruins, vai muito do feeling. Conversando com fãs da banda, no entanto, e baseado no meu próprio gosto pessoal, me parece que a já citada Mysterious, bem como a faixa-título (uma homenagem aos pais mortos de Schenker e Meine, os frontmen da banda) e a belíssima A Moment in a Million Years sejam as preferidas da maioria. Acrescentaria ainda as duas músicas mais pesadas do disco, Mind Like a Tree e Aleyah, como destaques positivos. Sem sombra de dúvidas, Eye II Eye é uma audição interessantíssima, inclusive para tentar se libertar de certos preconceitos musicais que todos temos.

Track List

1. Mysterious
2. To Be n° 1
3. Obsession
4. 10 Light Years Away
5. Mind Like a Tree
6. Eye to Eye
7. What U Give U Get Back
8. Skywriter
9. Yellow Butterfly
10. Freshly Sqeezed
11. Priscilla
12. Du Bist So Schmutzig
13. Aleyah
14. A Moment in a Million Years

Baixe o álbum aqui.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

cannot the kingdom of salvation take me home?

Noite de 27 de setembro de 1986. Proximidades da cidade sueca de Ljungby. Enquanto seguia para a capital Estocolmo, o ônibus da banda de thrash metal Metallica (à época ainda emergentes, tanto o estilo quanto a banda em si) derrapou na pista congelada e caiu em um precipício. Enquanto roadies e os integrantes da banda subiam, ainda sem entender toda a situação, percebeu-se que um dos integrantes da banda, o baixista, ainda estava lá embaixo. Conforme o ônibus capotava, ele, que havia ganhado o direito de dormir na cama de cima de um dos beliches do ônibus em um jogo de cartas, havia sido arremessado para fora do veículo, que acabou por esmagá-lo.

Clifford Lee "Cliff" Burton nasceu em 10 de fevereiro de 1962, na cidade californiana de Castro Valley. Seus pais, Ray e Jan Burton, influenciaram-no à carreira musical desde muito novo. Sua grande paixão, a princípio, era o teclado, influenciado pelo jazz que seu pai lhe apresentara. O gosto pelo heavy metal cresceu depois, influenciado pela crescente do Black Sabbath na Inglaterra e pelo surgimento de bandas como Judas Priest, Kiss e Motörhead. Ao completar 13 anos de idade, um fato mudou totalmente o direcionamento musical de Cliff: a morte de Scott Burton, seu irmão mais velho, que era baixista. O jovem Burton prometeu que se tornaria "o melhor baixista, em memória de sue irmão", e dedicou uma rotina diária de seis horas de ensaios nos instrumento.

Ao terminar o ensino médio na escola de sua cidade, Cliff seguiu para o Chabot Junior College. Lá, conheceu Jim Martin (ex-guitarrista do Faith No More), e com ele montou sua primeira banda, o Agents of Misfortune. Imagina-se que um dos festivais promovidos pela escola, denominado Batalha das Bandas, haja o primeiro registro de Cliff em sua história - tal registro já mostrava parte do que viriam a ser as músicas Pulling Teeth (Anesthesia) e For Whom the Bell Tools. Em meados de 1982, Cliff seguiu para o Trauma, sua primeira banda que demonstrou alguma notoriedade.

Em um show no Whisky a Go-Go (mítico barzinho da cidade de San Francisco), o Trauma contava com duas pessoas no público que viriam a ser relevantes para a carreira de Cliff (à época com 20 anos): James Hetfield e Lars Ulrich, fundadores da então recém-nascida Metallica. Após ver o solo de baixo de Cliff (a já citada Pulling Teeth), cheia de distorções e efeitos (ao ponto de confundir os membros do Metallica e este que vos escreve este post, deixando a entender que seria um guitarrista), Hetfield e Ulrich sondaram Cliff com muita insistência, para trazê-lo ao Metallica - cujo baixista, a época, era Ron McGovney. Com a condição de que a banda mudasse sua sede, de Los Angeles para San Francisco, Cliff concordou em ingressar na banda.

Com o Metallica, Cliff lançou três discos após sua entrada, ainda no ano de 1982. Muitos, inclusive eu, consideram tais discos como os melhores já lançados pela banda. Kill 'em All (1983) é um disco mais seco, onde claramente nota-se a influência de bandas como Misfits e Motörhead - a obra mais característica de Cliff, Pulling Teeth (Anesthesia), encontra-se no disco debut. O álbum seguinte, Ride the Lightning (1984), é mais virtuoso que seu anterior, com passagens que lembram músicas progressivistas. Músicas como For Whom the Bell Tools, que já tinha a introdução e algumas partes compostas por Cliff ainda nos tempos de Agents of Misfortune, e a instrumental The Call of Ktulu, composta por Burton e o ex-guitarrista Dave Mustaine (um dos maiores algozes do Metallica à época), se encontram no LP.

Finalmente, aquele que seria o maior sucesso da carreira de Cliff Burton: Master of Puppets. O terceiro disco do Metallica, lançado em 1986, traz desde petardos absolutos, como Battery, Damage Inc., Disposable Heroes e a faixa título (um dos maiores hits da história da banda), até composições mais sóbrias, como Welcome Home (Sanitarium), Leper Messiah e The Thing that Should not Be. A grande faixa do disco, porém, é a instrumental Orion, de aproximadamente oito minutos. Com transições que vão desde o thrash metal puro até um experimentalismo com altas doses de virtuose, Orion é a maior demonstração, na minha opinião, daquela que foi sua principal característica: o uso de seus pedais de distorção. Os efeitos de wah e os overdrives que Cliff impõe à música são impressionantes e muito belos. Audição mais que obrigatória a todos os fãs do instrumento, mesmo os mais "puristas".

Foi ainda na Damage Tour, no ano de 1986, que Cliff Burton deixou esse mundo. Mas hoje, no dia em que seria seu aniversário de 50 anos, seus fãs por todo mundo cultuam a memória deste grande baixista que revolucionou a forma de tocar o instrumento. É a singela homenagem deste blog ao mago das quatro cordas.

When a man lies, he murders some part of the world. These are the pale deaths which men miscall their liver. All this I cannot bear to witness any longer. Cannot the kingdom of salvation take me home?

Cliff Burton

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

danny gatton - 88 elmira st.

Discos solo de guitarristas têm a característica de primar pela técnica. Por serem trabalhos muitas vezes instrumentais (e, portanto, abrirem mão da composição das letras das músicas), alguns deles "abusam" do direito de lançar discos e emplacam dois, três ou até quatro discos em um mesmo período de 12 meses. John Frusciante, por exemplo, chegou ao cúmulo de lançar seis discos no período compreendido entre junho de 2004 e fevereiro de 2005.

Danny Gatton, no entanto, nunca foi tão "periódico" em seus discos. O jazz man, filho de guitarrista e versado no jazz e no blues desde pequeno, lançava no máximo um disco por ano - a maioria deles são audição obrigatória para os fanáticos por jazz. Foi um gênio subestimado toda vida, e infelizmente suicidou-se em 4 de outubro de 1994. Chegou a ser rankeado como o 63° melhor guitarrista de todos os tempos pela revista Rolling Stone e o 27° pela fabricante Gibson.

88 Elmira St, seu disco lançado em 1991, é o seu maior sucesso. Totalmente instrumental, o disco é calcado no jazz tradicional e no country, em especial, mas apresenta influências claras do rockabilly e do blues. Seu estilo peculiar de tocar me remeteu, a princípio, ao grande B.B. King, apesar de o som ser radicalmente diferente - as reais grandes influências de Gatton são Eric Clapton, Willie Nelson, Steve Earle e, em particular, seu ídolo Les Paul.

Além dos solos virtuosos de Gatton, destaca-se também os solos de saxofone do grande Bill Holloman, além da marcação precisa da bateria de Shannon Ford e do baixo de John Previti, fazendo com que a "cozinha" funcione a todo vapor - como em toda grande banda deve ocorrer, a propósito. Tais aspectos saltam aos olhos, por exemplo, no principal sucesso do disco, bem como da própria carreira de Danny Gatton: Funky Mama é uma música com todo o gingado do soul, mais a levada do blues, a pegada do country e os solos virtuosos do rockabilly. O disco ainda proporciona uma versão à la anos 1950 do tema principal da famosíssima série de TV de Matt Groening, Os Simpsons. Uma verdadeira obra-prima das vertentes que são a base de todo o rock.

Para baixar o disco, clique aqui.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

for against - shade side sunny side (2008)

A banda se chama For Against (Nebraska, EUA) e iniciou seus trabalhos em 1985 fazendo um post-punk de boa qualidade, mas nada que saltasse aos olhos. Com o passar dos anos e sucessivas trocas de músicos, a impressão que ficava não era bem de uma banda, mas de um encontro casual entre colegas com gosto musical comum e vontade de gravar. Shade Side Sunny Side (2008) é uma peça importante dessa curiosa discografia por se tratar de um trabalho econômico, quase sem recursos de estúdio, sem corais vultosos e solos devastadores, sem extrapolações, limitado por definição.

Afinal, o que poderia ser digno de nota nesse mar de simplicidade? Vamos começar por uma ideia comercial eficiente: ouvir música simples, que não transborda e nem se declara num primeiro momento, deixa o ouvinte tentado a ouvir de novo. E de novo. E amanhã também. Vai demorar até que enjoe, pois a música tem cara de ambiente e uma atraente possibilidade de tornar qualquer lugar uma extensão do rock bar mais próximo. O trabalho ganha ares ainda mais alternativos quando você percebe que completou uma audição ouvindo nada mais que voz, cordas e percussão, o básico do básico.

Em lugar de extensas e complexas melodias, os caras optam pela repetição sistemática dos mesmos trechos com leves variações de harmonia e timbre. Assim, dentro de uma mesma faixa, com as devidas quebras de ritmo e distorções, sensações antagônicas são alternadas sem perda de identidade da canção. Ora êxtase, ora calmaria, fica mais fácil decifrar a arte de capa, uma espécie de muro contínuo toda vida separando shade side de sunny side. A música parece feita sob medida para se alinhar ao muro e nunca se distanciar perigosamente dele – isso fica nítido na empolgação caótica e aventureira de Game Over, logo amainada pela balada Spirit Lake.

Pouco ousado e recheado de elementos sonoros que você com certeza já ouviu em outros lugares, ainda assim este disco merece ser ouvido pela inteligência de sua proposta e competência de seus músicos.

Track List:
1. Glamour
2. Underestimate
3. Why Are You So Angry?
4. Afterstate
5. Friendly Fires
6. Game Over
7. Spirit Lake
8. Quiet Please
9. Irresistable

Baixe o álbum aqui.

sábado, 21 de janeiro de 2012

leviathan - deepest secrets beneath (1994)

Assim que este disco chegou às minhas mãos, comentei com o André que sua publicação aqui no blog seria obrigatória. Fico impressionado com a quantidade de coisas boas que não fizeram o devido sucesso, embora tempos depois se tornem clássicos, relíquias que servem de inspiração. Este é o caso de Deepest Secret Beneath (1994) da banda estadunidense Leviathan.

Aqui temos uma espécie de “progressive power metal” tão criativo e bem estruturado que a incógnita musical chamada anos 90 foi incapaz de assimilar. O álbum é bastante linear, homogêneo e as faixas são permeadas o tempo todo pelas mesmas afinações, teclados e coros de estúdio. Recursos suficientes na medida e muita maturidade.

Talvez o grande trunfo seja o domínio explícito dos guitarristas sobre seus instrumentos: John Lutzow e Ronnie Skeen deitam e rolam sobre cada fraseado e abusam da simplicidade, os caras emocionam até nos acordes mais básicos e ensinam pra muito discípulo de Malmsteen por aí como se deve extrair feeling sem perder de vista a técnica.

Estão muito bem acompanhados pela firme marcação do baterista Ty Tammeus – cujas inversões não deixam a música cair no marasmo, defeito comum no progressivo – e pela linha melódica sem frescuras de James Escobedo. O vocal de Jack Aragon não me soa espetacular, mas também não consigo imaginar melhor textura que a dele para completar a proposta humilde (no melhor dos sentidos) que exala deste disco.

Um trabalho sabidamente metal, porém tão polido que ganha ares de concerto. Melhor coisa que faço é estacionar os elogios numa só palavra: essencial.

Track List:
1. Confidence Not Arrogance
2. Sanctuary
3. The Calling
4. Painful Pursuit of Passion and Purpose
5. Not Always Lost
6. The Falling Show
7. Run Forever
8. Disenchanted Dreams (Of Conformity)
9. Speed Kills

Você pode baixar este disco aqui.

sábado, 14 de janeiro de 2012

"vocês não sabem o que estão perdendo"



Quem é a nova geração ouvinte de bom metal pesado? Quando penso com seriedade nesta pergunta, quando tento me livrar dos estereótipos e imaginar que tipo de postura política, ética, filosófica ou crítica norteia esse indivíduo, sinto medo. Medo, pois tudo que vejo é um bando de jovem atrofiado entre a poltrona e o monitor do computador, cidadãos cuja rebeldia se resume a criticar – do alto do santuário de anonimato, máscaras e avatares que a internet tão bem configura – a banda Restart.

Não entendo como pode um indivíduo novo e repleto de perspectivas, alguém em cuja pouca idade o mundo deposita suas esperanças de tempos melhores, permanecer intacto no aconchego da residência enquanto o mundo acontece lá fora. O desabafo de Edu Falaschi, relevada sua mentalidade infanto-juvenil, goza de algum fundamento: a queda de público mais jovem nos shows das bandas nacionais é uma realidade preocupante. Quem não vai aos shows enfraquece a cena musical brasileira e não tem direito algum de cobrar melhores trabalhos dos artistas.

Quem barganha a incrível oportunidade do contato humano pela exposição a um tela-plana sem graça, está lentamente cavando a cova do metal nacional e fazendo sumir as bandas de menor expressão responsáveis pela manutenção da cultura metálica Brasil afora. Aqui o adjetivo “menor” contrasta com o tamanho da garra exibida pelos caras, a paixão que os leva a botarem o pé na estrada ofertando concertos a preços módicos e tomando prejuízo atrás de prejuízo só porque nossos meninos-machos-true-metal-críticos-de-orkut têm medo de vento.

Frequentar os shows não é uma ação de caridade para retardar o envelhecimento de um som que se tornou moribundo nos anos oitenta. Existe bom e variado metal sendo feito em vários cantos deste país e cabe a nós curtirmos absurdamente isso tudo. É inadmissível que em complexos urbanos com milhares, milhões de habitantes, não haja duas centenas deles dispostos a lotarem uma casa na beira da estrada e curtirem um som técnico, forte, de alto nível, executado ao vivo, sem playback, sem frescuras.

Os membros da Restart não têm um pingo de responsabilidade sobre a peça de museu em que está se tornando o metal nacional. Os culpados somos todos nós, loucos da cabeça apaixonados por som desgraçadamente bacana, que não fazemos jus à proporção de nosso amor.

sábado, 31 de dezembro de 2011

retrospectiva 2011 - o que ouvi este ano

Baseado na ideia da Paula em seu blog, resolvi falar um pouco dos discos lançados neste "quase ido" ano de 2011 que ouvi. Não foram lá muitas coisas, mas talvez seja interessante dar uma passada rápida e, de certa forma, ver o que veio de pérolas este ano - no sentido positivo ou no sentido pejorativo da palavra. Caso queiram expor seus pareceres sobre o seu ano de 2011 nos comentários, sintam-se à vontade.

Artillery - My Blood

Comecei relativamente tarde a olhar para 2011; era abril quando saiu o mais novo disco da veterana banda de thrash dinamarquesa, o Artillery. A cena thrasher europeia resume-se basicamente à Alemanha, a princípio, já  que é de lá que vêm bandas clássicas como Kreator, Sodom, Destruction e Tankard (estas quatro conhecidas como o "teutonic big four of thrash"). No entanto, bandas como o Artillery existem aos montes para quem tiver com disposição para ouvi-las - talvez, futuramente, postamos algo por aqui aos interessados. O Artillery tem uma discografia que, embora não tão expressiva em termos de vendagem, é bastante consistente em termos de sonoridade; é uma das bandas thrash que faz questão de soltar petardo atrás de petardo, sem muito espaço para algo que não seja aquele thrash clássico dos anos 1980. E o My Blood traz justamente este espírito, enfatizado pela faixa que abre o disco, Mi Sangre, que lembra bastante (pelo menos no instrumental) o debut Fear of Tomorrow (1985). O vocal, entretanto, deixa um pouco a desejar - a meu ver, faltou peso nos vocais quando a música pedia mais peso. Ainda assim, recomendadíssimo para os fãs do thrash dos anos 1980.

Opeth - Heritage

O Opeth me era uma incógnita quando me foi recomendado por um amigo. O que eu havia ouvido, garimpado com um tremendo mal gosto no YouTube, não era nem perto do suficiente para se arriscar a dizer que eu conhecia a banda. O que eu sabia dos caras é que eles eram suecos (o que por si só já traz uma boa impressão, bandas suecas costumam ser extremamente competentes no seu som) e que os discos lançados anteriormente mesclavam o tradicionalíssimo death metal escandinavo com elementos do folk, do jazz e do rock progressivo. Mesmo sem conhecer nada do som da banda, me predispus a ouvir o Heritage, que foi muito bem aceito pela crítica. Grata surpresa: o disco provou todas as expectativas. Um álbum extremamente maduro, músicos competentíssimos e belas composições. Para os fãs do progressivo, audição obrigatória; para aqueles que não suportam o experimentalismo progressivo, o disco talvez seja uma boa "nova tentativa" de finalmente encontrar-se com o estilo.

Hell - Human Remains

A NWoBHM não cansa de me surpreender. O movimento, muito provavelmente o maior da história da música em termos de influência e, digamos, de euforia que causou pelos quatro cantos do mundo, fascina a qualquer um que seja apaixonado pelo heavy metal, como eu. E quando você acha que não pode encontrar mais nada de novo, vem uma nova banda e te surpreende - ou nem tão nova, no caso. O que surpreende no Hell, além do som, obviamente, é a sua história curiosa: a banda foi formada em meados de 1982 e trabalhou apenas em algumas demos, mas só neste ano de 2011 foram lançar seu primeiro disco, Human Remains. A sensação ao ouvir esse achado é semelhante a estar em um laboratório de um desses cientistas loucos, enquanto se assiste ao "descongelamento" de um ser que ficou quase 30 anos em estado de criogenia. Os riffs secos e diretos, a influência do punk, até mesmo uma certa inocência, mesmo em tempos de um mercado fonográfico tão voraz, tudo isso salta demais aos olhos ao colocar o disco no play. Uma obra-prima.

Queensrÿche - Dedicated to Chaos

O Queensrÿche não foi uma banda que me agradou, à primeira vista. Torci o nariz ao ouvir o Empire (1991), certa vez, embalado pelo maior sucesso da banda, Silent Lucidity - e que atire a primeira pedra quem nunca ouviu a música. Tudo mudou quando fui apresentado ao disco debut dos caras, The Warning (1984) - disco esse que rendeu uma resenha aqui no blog, inclusive. As quebras de ritmo com a precisão do progressivo (obviamente, bem mais suaves) aliado à ferocidade do heavy metal, e com mais ênfase a este último aspecto, pautavam o som da banda que foi uma das pioneiras no chamado metal progressivo. Os discos Rage for Order (1986) e o masterpiece Operation: Mindcrime (1988) seguiram na mesma linha de composição, em uma vertente toda particular do metal prog que eu me atreveria a chamar, dentro dos moldes atuais de composição do estilo, de inocente. Com o sucesso comercial do Empire, as coisas mudaram drasticamente, e o Queensrÿche aparentemente começou a flutuar entre esse metal mais inocente e outro, mais maduro, nos moldes do Dream Theater e do Porcupine Tree. Não deu muito certo: as composições começaram a ficar "confusas", quase que sem identidade. A derrocada culminou no Dedicated to Chaos, lançado esse ano, um disco muito fraco comparado aos poderosos lançamentos de outrora. Ponto positivo, porém, para os sempre poderosos vocais de Geoff Tate.


Marty Friedman - Tokyo Jukebox II

Marty Friedman sempre foi um guitarrista que ficou às margens do sucesso. Exceto em sua passagem pelo Megadeth, sempre foi um cara absolutamente fora dos holofotes. Mas essa aparente humildade esconde uma mente genial. Prova disso são os seus trabalhos iniciais: dois discos com o Hawaii (One Nation Underground, 1983, e Natives are Restless, 1985) e dois discos com o Cacophony (Speed Metal Symphony, 1987, e Go Off!, de 1988) - cujo companheiro de guitarra era ninguém menos que Jason Becker, que integrou a banda de David Lee Roth após o fim da banda. Os discos (e em particular os debuts) de ambas as bandas são obras-primas do metal, que ficaram subjulgadas sob obras de bandas mais famosas, incluindo a banda seguinte de Friedman, o Megadeth. Este foi sem sombra de dúvidas o ápice da carreira de Friedman: o petardo Rust in Peace (1990), os sucessos absolutos de público e crítica Countdown to Extinction (1992) e Youthanasia (1994), o disco de covers Hidden Treasures (1995) e os obscuros Crypting Writings (1997) e Risk (1999). Daí, Friedman partiu para sua carreira solo, para seguir uma sonoridade mais pop e influenciada pela cultura japonesa. Os três últimos discos por ele lançados, Tokyo Jukebox (2009) e Bad DNA (2010), além do próprio Tokyo Jukebox II, são o ápice de sua carreira que, apesar de muito diferente de tudo o que ele já faz anteriormente, é interessantíssima - inclusive por essa disparidade. Audição mais do que recomendada.

Michael Schenker - Temple of Rock

Taí um guitarrista que eu julgo extremamente desvalorizado. Foi ele o primeiro a unir a velocidade à virtuosidade nos seus solos, e sem nenhum dispositivo eletrônico existente à época. O prodígio Michael Schenker gravou seu primeiro disco, Lonesome Crow (o disco debut da banda alemã Scorpions), com apenas 16 anos, uma guitarra herdada do seu irmão mais velho, Rudolf Schenker (que também tocou no disco, com uma guitarra um pouco mais nova - ou menos usada) e um Marshall em frangalhos, segundo reza a lenda. Com apenas 17 anos, foi convidado a integrar uma das maiores bandas do mundo à época, a inglesa UFO, em 1973. Seguiu para sua carreira solo, sob o nome de MSG, Michael Schenker Group, na década de 1980, que foi várias vezes interrompida devido a seu vício na bebida e nas drogas. Seu novo lançamento, Temple of Rock, no entanto, não lembra em nada algumas características de seus outros discos. Schenker, provando ser um guitarrista muito mais maduro e mais virtuoso do que nunca, criou uma sonoridade totalmente única neste disco que, para mim, é o melhor lançamento do ano. O fraseado de Schenker e a participação de músicos competentíssimos, do quilate de Doogie White, ex-vocalista do Rainbow, seu irmão Rudolf e o ex-baterista dos Scorpions, Herman Rarebell, são a maior atração do disco, que também conta com uma produção fenomenal.

Metallica - Lulu e Megadeth - Th1rt3en


São dois discos de características muitíssimo diferentes mas, já que a rivalidade entre as bandas é gigantesca e houveram muitas piadinhas a respeito, tratá-los em um tópico só não soa tão absurdo. Talvez tenham sido esses os lançamentos mais esperados do ano pelos fãs do metal: o disco do Megadeth precisava segurar a peteca de uma banda que vinha de um excelente antecessor, o Endgame (2009); já o disco do Metallica atraía a atenção de todos por ser um momento crucial na discografia da banda, que vinha de fracassos de crítica como Load (1996), e St. Anger (2003), mas que melhorou consideravelmente com o Death Magnetic (2008), além de trazer uma parceria no mínimo inusitada com Lou Reed (ex-Velvet Underground). Dada a ousadia do Metallica (a meu ver, no momento errado) e a precaução do Megadeth, prevaleceu o que todos esperavam: Lulu foi achincalhado por fãs e crítica (ao ponto de ser apontado como o pior disco do ano segundo o Female First e o 32° pior disco da história da música, segundo o site Metacritic), e Th1rt3en, apesar de não saltar aos olhos, foi bem recebido.

E pra você, qual o melhor lançamento de 2011? E o pior? Qual disco faltou na lista?

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

...e se 2 x 3 fosse 0?




Na vida, dizem que nem tudo que aparenta ser o é. Na matemática, e eu descobri isso recentemente, isso também vale. Tive a honra de assistir às aulas de Introdução à Teoria dos Números neste semestre, a matéria que até o momento mais me interessou, ao ponto de ter uma forte tendência de seguir com ela futuramente. Fiquei surpreso com o professor que, a certa altura do campeonato, disse a nós, alunos (à época, apenas sete), que poderia nos provar que 2 x 3 não necessariamente é 6 - poderia, talvez, ser 0. "Como assim? Esse cara deve estar louco..." Era impossível! 2 + 2 + 2 = 6... 3 + 3 e, de novo, 6. Não havia um jeito plausível de fazer isso reduzir-se a zero. Para meu espanto, há - uma técnica matemática chamada congruência, creditada ao notável matemático alemão Carl Friedrich Gauss, conhecido pela alcunha "O Príncipe dos matemáticos", permite.

Gauss foi um matemático alemão, dos séculos XVIII - XIX. Há uma história famosa de que, quando na escola primária, Gauss foi indagado sobre qual seria a soma de todos os números compreendidos entre 1 e 100, como exercício pelo mal comportamento da sala. Quase que imediatamente, deu a resposta: 5050. Gauss supôs que, somando o último ao primeiro número da sequência, o segundo ao penúltimo, o terceiro ao antepenúltimo e assim sucessivamente, sempre encontraria o mesmo número - de fato, 1 + 100 = 2 + 99 = 3 + 98 = 101. Como há exatamente 50 pares dessa forma (a metade do total de números, que neste caso são 100), concluiu que 101 * 50 = 5050 era a resposta correta. Usara ali a progressão aritmética, algo que não existia até então - ou seja, não bastasse o jovem Gauss dar a resposta correta tão rapidamente, ele havia inventado um novo tipo de cálculo.

Outra das grandes contribuições de Gauss, como já citado, são as congruências, que nada mais são que separar os números em uma categoria específica, partindo-se de um parâmetro. Usaremos a notação

a ≡ r (mod d)

para denotar a congruência. Lê-se "a é congruente a r módulo d", onde r é o resto da divisão de a por d. Exemplificando: suponhamos uma congruência módulo 2. Assim, dividiríamos todos os números inteiros em dois grandes conjuntos: aqueles que deixam resto 0 e aqueles que deixam resto 1 na divisão por 2 - ou seja, os números pares e os ímpares, respectivamente. Assim, 5 ≡ 2 (mod 3), 9 ≡ 4 (mod 5) e 16 ≡ 5 (mod 11).

Para exemplificar melhor as congruências, vamos pensar em um objeto bastante cotidiano: o relógio. Nosso sistema de medição do tempo utiliza diversas formas de congruência. No exato momento em que escrevo este post, são exatamente 22 horas e 44 minutos, segundo o horário de verão sob o fuso horário de Brasília, se o relógio do notebook estiver mesmo correto. O que isso significa? Desde que o dia 29/12/2011 (hoje) começou, o ponteiro dos minutos deu exatas 22 voltas completas ao redor do relógio, e neste momento situa-se 264° à esquerda do ponto mais alto do relógio, na posição correspondente aos 44 minutos. Quando eram 21 horas e 44 minutos, obviamente, o ponteiro dos minutos estava no mesmo lugar que ele está agora, bem como estará às 23 horas e 44 minutos, daqui a uma hora. A cada 60 minutos, período que chamamos de uma hora, o ponteiro dos minutos completa um ciclo em torno do eixo central no relógio. Podemos definir assim a congruência: algo cíclico, que de períodos em períodos volta a um dado ponto - no caso do relógio, tal periodicidade tem razão (ou módulo) 60. Escrevendo isso na forma de congruências (salvo as aberrações de notação), isso seria

22h44min ≡ 44 (mod 60).

Analogamente,

13h14min ≡ 14 (mod 60)
03h35min ≡ 35 (mod 60)
19h59min ≡ 59 (mod 60)
10h01min ≡ 1 (mod 60)

e assim sucessivamente.

Voltemos à teoria. Agora vamos um pouco além: tentaremos fazer operações com os números de um dado conjunto - operações comuns com o conjunto dos números naturais, como a soma e a subtração. Isso pode ser feito, obviamente, no exemplo de um conjunto de 60 elementos, como o relógio; se são 17 horas e 23 minutos, daqui a 15 minutos teremos 17 horas e 37 minutos - o ponteiro dos minutos caminha 15 unidades para a esquerda, exatamente como fazemos na soma usual do conjunto dos naturais. Da mesma forma, se são 08 horas e 49 minutos, daqui a 15 minutos teremos o ponteiro dos minutos na posição 4, pela característica cíclica das congruências. Somando 49 a 15 teremos 64, mas como o relógio só "suporta" 60 minutos, o ponteiro volta ao início e reinicia daí, chegando de volta no 4.

Já estamos em condições de trabalhar com o problema apresentado no início do post: poderia 2 x 3 ser 0? Vamos supor agora um conjunto com apenas 6 elementos (chamaremos este conjunto de Z6). Faremos a multiplicação usual entre eles: 2 x 3, obviamente, dá 6. Imagine um relógio com apenas 6 posições, ao invés das 60 de um relógio comum. O ponteiro pararia, no caso de uma multiplicação 2 x 3, exatamente no 6, que é o número de casas que o relógio tem no total... e isso faz com que ele volte para o começo, na posição 0. Percebem? De fato, quando tratamos de um conjunto com apenas 6 elementos, 2 x 3 pode mesmo ser 0. Análogo a este caso poderiam ser multiplicações quaisquer que resultassem em 12, 18, 24, 30... todas elas levariam à posição 0 - com o acréscimo de uma ou mais voltas, obviamente, o que não tem relevância no nosso problema.

A Matemática é tão bela quanto desafiadora. Curiosidades como essa são ocultadas do ensino da disciplina nos anos iniciais de qualquer aluno, colaborando com a fama da Matemática de ser um bicho-de-sete-cabeças e de nós, matemáticos, sermos corajosos, porém loucos, em tentar dominar a fera. A realidade não é bem assim, muitas vezes. Penso que se assuntos interessantes, como esse e muitos outros (aos quais pretendemos trazer ao blog futuramente, quem sabe), fossem mostrados aos estudantes nas fases iniciais do seu aprendizado, o panorama poderia, sim, ser muito diferente. Infelizmente, essa é apenas uma das facetas da educação em nosso país, e não só no que tange ao ensino da Matemática como também das demais disciplinas.

matemúsica




No meu post introdutório, citei as minhas duas maiores paixões: a matemática e a música. Pensar em alguma interrelação entre áreas, a princípio tão díspares, não é algo tão imediato, de fato. A matemática, rainha de todas as ciências e o supra-sumo da razão humana, poderia ter algo em comum com a liberdade da expressão musical, algo tão desprovido de razão? A verdade é que elas são mais íntimas do que vocês talvez possam imaginar. E isso desde longa data.

Voltemos à Grécia Antiga, a terra de onde o pensamento crítico, nas mais diversas áreas, finalmente emergiu no mundo ocidental. Reza a lenda que o notável matemático Pitágoras de Samos - esse mesmo que você imaginou, aquele do triângulo - passava em frente a uma ferraria. Ouvia o ferreiro martelando em uma barra, e percebeu que, conforme ele batia em diferentes pontos, a barra emitia sons diferentes. Pitágoras, então, criou a primeira escala musical que se tem registro. Ao dividir uma corda em diferentes proporções, Pitágoras concluiu que algumas frações específicas emitiam sons particulares, aos quais ele denominou "harmônicos". Assim, uma corda inteira produziria um dado som harmônico, denominado fundamental (o harmônico fundamental poderia ser mais grave ou mais agudo, dependendo da extensão da corda); dividindo-se a corda na metade, obtém-se o segundo harmônico, equivalente a uma oitava acima, segundo a notação atual, em relação ao harmônico fundamental. No terceiro harmônico, a corda era reduzida a um terço para se encontrar o terceiro harmônico; depois, em um quinto de corda encontra-se o quarto harmônico; reduzindo a um sétimo da corda, o quinto harmônico; e assim sucessivamente. Intervalos de corda não dispostos entre os harmônicos, denominados não-harmônicos, produziam sons intermediários, "desagradáveis", segundo Pitágoras. Os estudos de Pitágoras evoluiriam em diferentes civilizações do mundo antigo e se tornariam a família de escalas chamadas pentatônicas.

Muitos anos depois, já nos séculos XVII e XVIII, surgiu aquele que, para muitos, configura-se como o compositor mais notável de toda a história: Johann Sebastian Bach. O autor de obras magistrais como a Toccata and Fugue em Ré Menor, A Paixão segundo São Mateus e as variações Goldberg era, ironicamente (ou não), um excelente matemático. Apesar de sua biografia ser um tanto controversa neste ponto, dizia-se que Bach compunha segundo critérios matemáticos muitíssimo rigorosos. Notavelmente, a tão conhecida arte da fuga traz o conceito de simetria à música; costuma-se dizer que as fugas de Bach são as composições mais "matemáticas" feitas em toda a história.

É interessante salientar também que Bach usava uma escala musical que trazia sutis diferenças com relação à escala inventada por Pitágoras na Antiguidade Clássica, que ele usava puramente por sua beleza, sem nenhum atributo matemático. O que é mais interessante é que a escala musical de Bach não era algo meramente empírico, afinal: contemporâneo ao compositor era o matemático suíço Jakob Bernoulli. (Jakob, junto com seu irmão Johann Bernoulli, foram os primeiros matemáticos da família Bernoulli, com grande tradição na ciência - Bach, ironicamente, também foi o primeiro compositor notável do clã dos Bach, que manteve a tradição musical durante séculos.) Jakob Bernoulli propôs-se a estudar uma família de curvas, chamadas espirais logarítmicas (e que ele próprio denominou spira mirabilis, a espiral maravilhosa), uma curva em espiral que seguia uma constante, chamada "e" ou constante de Euler (em homenagem ao matemático suíço Leonhard Euler, o mais notável dos alunos de Johann). Foi verificado posteriormente que a espiral crescia em razões de uma outra constante matemática famosa, chamada φ (ou fi) (vide o post sobre a proporção áurea).
A espiral logarítmica de Bernoulli e seu paralelo

com a escala cromática, de Bach.

"Mas então, que raios a spira mirabilis de Bernoulli tem a ver com a obra de Bach?", vocês podem se perguntar. Acontece que Bach verificou que a escala pentatônica tinha algumas incoerências, dentro de sua perspectiva musical, e decidiu criar sua própria escala, batizada escala cromática, composta de 12 tons - na verdade, os sete tons da escala diatônica acrescidos de cinco tons intermediários. Em seu livro "e: A História de um Número", Eli Maor imagina um encontro fictício entre Johann Bernoulli e Bach em Leipzig, onde Bach viveu seus anos finais. Após o músico apresentar-lhe sua nova invenção, Bernoulli cita a notável contribuição matemática de seu irmão, relacionando a escala cromática com a espiral logarítmica de Jakob. A escala cromática descreveria uma espiral logarítmica, em que cada tom estivesse a uma distância de π/6 uns dos outros. O período dessa espiral estaria fora de fase, a uma razão de φ unidades (veja imagem ao lado).

Platão e seus seguidores costumavam dizer que, se deus não era um grande matemático, a própria matemática era o deus que dá a beleza ao universo. Conceitos a princípio abstratos, como as diferentes simetrias, o fácil encontro de algumas constantes matemáticas em todo o universo e mesmo todo o caráter esotérico que envolve a matemática, a priori, podem deixar tal impressão. E, de fato, a matemática rege boa parte dos comportamentos aleatórios que vemos pelo cosmos. Com a música não é diferente; como Pitágoras, Bach e Bernoulli demonstraram, ao longo dos séculos, há muito mais que puramente arte na música - há também uma beleza intrinsecamente racional. Talvez seja a mescla entre a criatividade da música e a rigidez matemática que torne a arte musical algo tão belo. Ou, talvez, a própria matemática seja uma arte.