segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

...e se 2 x 3 fosse 0?




Na vida, dizem que nem tudo que aparenta ser o é. Na matemática, e eu descobri isso recentemente, isso também vale. Tive a honra de assistir às aulas de Introdução à Teoria dos Números neste semestre, a matéria que até o momento mais me interessou, ao ponto de ter uma forte tendência de seguir com ela futuramente. Fiquei surpreso com o professor que, a certa altura do campeonato, disse a nós, alunos (à época, apenas sete), que poderia nos provar que 2 x 3 não necessariamente é 6 - poderia, talvez, ser 0. "Como assim? Esse cara deve estar louco..." Era impossível! 2 + 2 + 2 = 6... 3 + 3 e, de novo, 6. Não havia um jeito plausível de fazer isso reduzir-se a zero. Para meu espanto, há - uma técnica matemática chamada congruência, creditada ao notável matemático alemão Carl Friedrich Gauss, conhecido pela alcunha "O Príncipe dos matemáticos", permite.

Gauss foi um matemático alemão, dos séculos XVIII - XIX. Há uma história famosa de que, quando na escola primária, Gauss foi indagado sobre qual seria a soma de todos os números compreendidos entre 1 e 100, como exercício pelo mal comportamento da sala. Quase que imediatamente, deu a resposta: 5050. Gauss supôs que, somando o último ao primeiro número da sequência, o segundo ao penúltimo, o terceiro ao antepenúltimo e assim sucessivamente, sempre encontraria o mesmo número - de fato, 1 + 100 = 2 + 99 = 3 + 98 = 101. Como há exatamente 50 pares dessa forma (a metade do total de números, que neste caso são 100), concluiu que 101 * 50 = 5050 era a resposta correta. Usara ali a progressão aritmética, algo que não existia até então - ou seja, não bastasse o jovem Gauss dar a resposta correta tão rapidamente, ele havia inventado um novo tipo de cálculo.

Outra das grandes contribuições de Gauss, como já citado, são as congruências, que nada mais são que separar os números em uma categoria específica, partindo-se de um parâmetro. Usaremos a notação

a ≡ r (mod d)

para denotar a congruência. Lê-se "a é congruente a r módulo d", onde r é o resto da divisão de a por d. Exemplificando: suponhamos uma congruência módulo 2. Assim, dividiríamos todos os números inteiros em dois grandes conjuntos: aqueles que deixam resto 0 e aqueles que deixam resto 1 na divisão por 2 - ou seja, os números pares e os ímpares, respectivamente. Assim, 5 ≡ 2 (mod 3), 9 ≡ 4 (mod 5) e 16 ≡ 5 (mod 11).

Para exemplificar melhor as congruências, vamos pensar em um objeto bastante cotidiano: o relógio. Nosso sistema de medição do tempo utiliza diversas formas de congruência. No exato momento em que escrevo este post, são exatamente 22 horas e 44 minutos, segundo o horário de verão sob o fuso horário de Brasília, se o relógio do notebook estiver mesmo correto. O que isso significa? Desde que o dia 29/12/2011 (hoje) começou, o ponteiro dos minutos deu exatas 22 voltas completas ao redor do relógio, e neste momento situa-se 264° à esquerda do ponto mais alto do relógio, na posição correspondente aos 44 minutos. Quando eram 21 horas e 44 minutos, obviamente, o ponteiro dos minutos estava no mesmo lugar que ele está agora, bem como estará às 23 horas e 44 minutos, daqui a uma hora. A cada 60 minutos, período que chamamos de uma hora, o ponteiro dos minutos completa um ciclo em torno do eixo central no relógio. Podemos definir assim a congruência: algo cíclico, que de períodos em períodos volta a um dado ponto - no caso do relógio, tal periodicidade tem razão (ou módulo) 60. Escrevendo isso na forma de congruências (salvo as aberrações de notação), isso seria

22h44min ≡ 44 (mod 60).

Analogamente,

13h14min ≡ 14 (mod 60)
03h35min ≡ 35 (mod 60)
19h59min ≡ 59 (mod 60)
10h01min ≡ 1 (mod 60)

e assim sucessivamente.

Voltemos à teoria. Agora vamos um pouco além: tentaremos fazer operações com os números de um dado conjunto - operações comuns com o conjunto dos números naturais, como a soma e a subtração. Isso pode ser feito, obviamente, no exemplo de um conjunto de 60 elementos, como o relógio; se são 17 horas e 23 minutos, daqui a 15 minutos teremos 17 horas e 37 minutos - o ponteiro dos minutos caminha 15 unidades para a esquerda, exatamente como fazemos na soma usual do conjunto dos naturais. Da mesma forma, se são 08 horas e 49 minutos, daqui a 15 minutos teremos o ponteiro dos minutos na posição 4, pela característica cíclica das congruências. Somando 49 a 15 teremos 64, mas como o relógio só "suporta" 60 minutos, o ponteiro volta ao início e reinicia daí, chegando de volta no 4.

Já estamos em condições de trabalhar com o problema apresentado no início do post: poderia 2 x 3 ser 0? Vamos supor agora um conjunto com apenas 6 elementos (chamaremos este conjunto de Z6). Faremos a multiplicação usual entre eles: 2 x 3, obviamente, dá 6. Imagine um relógio com apenas 6 posições, ao invés das 60 de um relógio comum. O ponteiro pararia, no caso de uma multiplicação 2 x 3, exatamente no 6, que é o número de casas que o relógio tem no total... e isso faz com que ele volte para o começo, na posição 0. Percebem? De fato, quando tratamos de um conjunto com apenas 6 elementos, 2 x 3 pode mesmo ser 0. Análogo a este caso poderiam ser multiplicações quaisquer que resultassem em 12, 18, 24, 30... todas elas levariam à posição 0 - com o acréscimo de uma ou mais voltas, obviamente, o que não tem relevância no nosso problema.

A Matemática é tão bela quanto desafiadora. Curiosidades como essa são ocultadas do ensino da disciplina nos anos iniciais de qualquer aluno, colaborando com a fama da Matemática de ser um bicho-de-sete-cabeças e de nós, matemáticos, sermos corajosos, porém loucos, em tentar dominar a fera. A realidade não é bem assim, muitas vezes. Penso que se assuntos interessantes, como esse e muitos outros (aos quais pretendemos trazer ao blog futuramente, quem sabe), fossem mostrados aos estudantes nas fases iniciais do seu aprendizado, o panorama poderia, sim, ser muito diferente. Infelizmente, essa é apenas uma das facetas da educação em nosso país, e não só no que tange ao ensino da Matemática como também das demais disciplinas.