domingo, 17 de julho de 2011

capítulo 4: azedos feito chucrute, competentes feito poucos







Quase todos os países têm alguma participação na história da música. Alguns deles se sobressaem, mas nenhum chega aos pés da Alemanha, que há séculos ensina como produzir música refinada. Ali nasceram brilhantes cabeças do passado: Bach, Schumann, Telemann, Händel, Wagner, Bruch, Mendelssohn, Beethoven, entre outras. No caso da música popular e do rock’n roll em particular, a contribuição germânica não haveria de ser menos significativa.

Terminada a Segunda Guerra Mundial em meados dos anos 40, a Alemanha saía destruída e um amargo sentimento imposto pela derrota se contrapunha ao nacionalismo vibrante de outrora. Seu território fora partilhado em quatro zonas de ocupação administrativa sob os cuidados de França, Reino Unido, Estados Unidos e União Soviética. A influência estadunidense, como de costume, impôs àquela nação em ruínas não apenas tanques de guerra, mas hábitos de vida, consumo e cultura que seriam a marca indelével dos povos ocidentais na segunda metade do século XX. A geração posterior à rendição nazista testemunhou o nascimento de um mercado fonográfico local entupido por valores estéticos anglo-saxões, dentre eles o rock’n roll. Aquela música revolucionária e dançante percorria o mundo de diferentes formas, chegando como novidade dramática aos ouvidos alemães.

Adolf Hitler (1889 - 1945)
A princípio alguns protestos da classe intelectual contra aquela injeção de rock nas veias sonoras da nação. Protestos inúteis porque em cada esquina das grandes cidades era possível encontrar admiradores de Chuck Berry e imitadores de Elvis Presley. Muito melhor seria reconstruir a fragilizada identidade do povo alemão através do rock, utilizar dos meios invasores para contestar a própria invasão; é dessa tomada de consciência sobre o inevitável que surge o rock alemão. De certa forma, o rock alemão já nasceu contestador, pregando valores progressistas, respondendo a realidade artística europeia e americana com material próprio, rompendo com a música folclórica e propagandística que insistia nas televisões e rádios locais, herança maldita do terceiro Reich. Os trabalhos do crítico e multi-instrumentista Karlhein Stockhausen foram fundamentais na pesquisa e divulgação do gênero, ainda limitado por paradigmas de um sistema educacional falido que educava a juventude hitlerista, por exemplo, para queimar livros considerados subversivos. Se o rock’n roll não se instaurou democraticamente naquele lugar, pelo menos ajudaria a compensar os atrasos de uma sociedade ilhada.

Após necessária estagnação nas exportações daquele lugar, uma interpretação particular do psicodelismo e do rock progressivo começava a surgir e chamar a atenção do mundo inteiro: o krautrock – kraut foi o insulto cunhado pelos ingleses para descrever aqueles “azedos feito chucrute” (sauerkraut). O som também levava o nome de rock, mas diferia radicalmente do rock feito em outros lugares, as bandas mantinham postura radical e investiram na superação do vergonhoso passado recente alemão, fazendo renascer nas artes aquela identidade nacional cambaleante. Bandas como Amon Düül (I & II), Krokodil, Can, Birth Control, Ash Ra Tempel, Berluc, Faust, Tangerine Dream e Neu! descartavam toda a base melódica que ingleses e italianos tanto adoravam, em vez disso procuravam um som mais sóbrio, racional, baseado no timbre e na economia de motivos. É bem verdade que os álbuns lançados por estas bandas tinham alto grau de distinção entre si, mas pelos elementos supracitados e pela nítida proposta de contracultura, merecem ser todos classificados como krautrock.


Kraftwerk: Ralf Huttter, Karl Bartos, 
Wolfgang Flür e Florian Schneider
No fim dos anos 60, havia público interessado em trabalhos de krautrock e o mercado de revistas e selos especializados voltava a lucrar. O exemplo de estabilidade da Deutsche Grammophon, gravadora mais antiga do mundo ainda em atividade, encorajava o investimentos em modernos estúdios e equipamentos não só de gravação, mas concepção de novas músicas. Brain, Ohr e outras gravadoras repetiam o bem-sucedido modelo europeu de levar jovens promissores e suas bandas para sessões de reconhecimento de materiais de sintetização mais caros que automóveis. A prosperidade da cena alemã ainda precisava de um encontro fatídico com o resto do mundo. Ralf Hutter e Florian Schneider, ex-alunos de Stockhausen, fundariam o Kraftwerk e romperiam com o passado da maneira mais óbvia possível: olhar para o futuro.

Autobahn (1974) é o quarto álbum de estúdio do Kraftwerk e reformula o papel da tecnologia na sociedade de então. Na mensagem profética do Kraftwerk, a tecnologia não apenas se restringia aos estúdios para ser dominada por uma elite intelectual, mas seria o futuro da humanidade, o nascer de valores morais e estéticos baseados em suas facilidades. O progresso do homem passava por veículos motorizados e auto-estradas (autobahn) que retalhariam as nações para sempre e isso foi cantado em climas cósmicos, viajantes, estimulantes, típicos do rock progressivo. Die Mensch-Maschine (1978) e Computerwelt (1981) abordam os dilemas sociais e filosóficos entre homem e máquina, criatura que substituía com elegância o trabalho braçal do criador e, por que não?, seus esforços intelectuais em inocentes algoritmos que a inteligência artificial desenvolvia. Os Kraftwerk são considerados também pais da música eletrônica porque se preocupavam bastante com o visual das apresentações, não tinham a menor vergonha de levar pesados equipamentos eletrônicos para onde quer que fosse e, como por ironia, todo aquele pragmatismo e repetição dos robots também faria sucesso nas discotecas.

Com vistas para o mercado internacional, não tardaram em surgir as primeiras bandas de hard rock alemão, desta vez com uma proposta bem mais parecida com o que se fazia no resto do mundo. Dali surgiram as bandas Pink Cream 69, Frontline, Zeno, Jaded Heart e Mad Max, entre outras, que lançariam excelentes trabalhos. Mas nenhuma outra fez tanto sucesso quanto os Scorpions, um grupo raro e talentoso que conseguiu adequar seu som ao longo dos anos e emplacar hits atrás de hits nas rádios do mundo inteiro. Amantes de ou leigos em rock que não tenham se isolado numa caverna há mais de trinta anos certamente já ouviram “Rock You Like a Hurricane”, “Winds of Change”, “Moment of Glory” e “Send me An Angel”. A banda surgiu em Hannover na década de 60, fundada pelos irmãos guitarristas Michael Schenker e Rudolf Schencker e a feliz escolha pelo vocalista Klaus Meine. Tokyo Tapes (1979) mostra ao mundo um grupo entrosado e brilhante que se sagraria, sem sombra de dúvidas, a maior referência de rock’n roll alemão de todos os tempos.

Após o dito resgate cultural, a divisão política parece ter sido outro fator de estímulo aos artistas. Se observarmos de perto as produções das “duas Alemanhas”, notaremos ideias libertárias quase iguais com oportunidades diferentes de serem expostas. Assim, o mercado oriental jazia hermético em plenos anos 80, até existiam grupos de sucesso vindos dali, mas eram poucos. Por outro lado, musicólogos e curiosos têm descoberto uma Alemanha soviética que desenvolveu, dentro de suas limitações, uma impressionante cultura underground e bandas de garagem de enorme potencial que acabaram nos primeiros trabalhos – e que trabalhos! De volta ao lado ocidental do muro, o heavy metal tradicional ganhava clássicos inigualáveis como Restless and Wild (1982) do Accept e Heavy Metal Breakdown (1984) do Grave Digger e Death or Glory (1989) do Running Wild. Por mais tradicional que fosse até então, o metal teutônico flertava discretamente com outras vertentes embrionárias.

Helloween: Kai Hansen, Ingo Schwichtenberg,
Markus Grosskopf, Michael Weikath e Michael Kiske
Uma dessas vertentes é o power metal, combinação de velocidade instrumental, sons melódicos e temas épicos que se desenvolveu em alguns álbuns modestos e coletâneas (uma opção barata para que duas bandas ou mais lançassem suas músicas de trabalho e partilhassem despesas de divulgação e turnê). No entanto, foi o Helloween que deu ao gênero uma formatação definitiva com os álbuns Keeper of The Seven Keys 1 e 2 (1987-1988), aliviando a sujeira nas guitarras e usando bastante teclado. O genial Kai Hansen dava lugar nos vocais a Michael Kiske, então com 18 anos, cujo modo de cantar seria referência no gênero. Outros bons grupos alemães do estilo são Blind Guardian, Gamma Ray e Primal Fear, entre outros. Ao aliar peso e melodia com rara inteligência, Helloween influenciou outros grupos que fariam um som chato, previsível e melado. Penso que uma banda tão boa deveria ter melhor sorte em suas influências futuras. Outra vertente de particular sucesso por lá é o thrash metal, iniciado pelo Holy Moses e pelo Destruction. A princípio tudo era muito parecido com a cena dos EUA e da Inglaterra, mas em pouco tempo experimentava o mesmo nível de independência alcançado por outros gêneros. Persecution Mania (1987) do Sodom e Pleasure to Kill (1986) do Kreator exemplificam a característica mais ilustre do thrash germânico: sua comunicação acima da média com o death em riffs crus e temas destruidores.

Talvez por isso os anos 90 representem a decadência do estilo, ofuscado por sons mais leves e atrativos para o grande público, donde resultam incursões lamentáveis no punk rock, gótico e industrial. Boa exceção é o pessoal do Tankard que se mantém fiel ao estilo original e jamais ficou três anos seguidos sem lançar um disco de inéditas. Os últimos anos têm sido fundamentais para a recuperação e evidência do rock alemão. A segunda maior economia do mundo oferece suporte a uma dezena de mercados distintos, coexistindo sucesso de grupos tão distintos quanto Tokio Hotel, Tomte e Rammstein, a chamada neue Deutsche musik.

Quando adolescente, estudei música com alemães intercambistas. Minha impressão após o primeiro contato é que naquele país se bebia outra água, nada justificava que outros adolescentes soubessem tanto da música de sua pátria sem uma educação formal para tanto. Anos mais tarde descobri que eles preservam a história de seus compositores nas escolas e se gabam deles para o resto do mundo (igualzinho procedemos com Villa-Lobos, Camargo Guarnieri, José Maurício Nunes Garcia ou Carlos Gomes, né?). Lá muitas bandas de garagem são incentivadas a continuar seus trabalhos porque, no entender daqueles governantes, elas promovem a cultura local e merecem, mediante comprovação, incentivos financeiros iniciais (igualzinho os políticos daqui, né?). A história do rock alemão é fonte de aprendizado para o mundo inteiro, em particular para os brasileiros.